Reportagem: Noriana Behrend | Edição de Áudio: Matheus Golle
Reportagem Especial: A chuva, que normalmente simboliza benção e abundância, no Rio Grande do Sul se transformou em um sinal de apreensão e desespero, associada à maior catástrofe já registrada no estado. Seis meses, após a tragédia climática, surgem questionamentos sobre a reconstrução e o processo de recuperação da vida e dos negócios. A ação do poder público, acusado de negligência em prevenir e apoiar as vítimas, é questionada: a ajuda realmente chegou a quem precisava? Além disso, investiga-se as causas da catástrofe, que causou o bloqueio de importantes vias e ilhou cidades inteiras, incluindo Porto Alegre. A tragédia é analisada como reflexo da ação humana e do contexto internacional sobre o aquecimento global. A matéria também aborda as vítimas humanas, tanto aquelas que receberam apoio quanto aquelas que foram alvo de aproveitadores e oportunistas.
Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul foi assolado pela maior tragédia climática de sua história. As enchentes, que tomaram o estado de norte a sul, afetaram centenas de milhares de pessoas, destruindo casas, estabelecimentos comerciais, infraestruturas essenciais e deixando um rastro de dor e perda irreparável. Embora quase seis meses tenham se passado desde o evento, a recuperação está longe de ser concluída e o estado ainda luta para se reerguer.
O Impacto Humano das Enchentes
O caso de Carolina Presser Schwochow, psicóloga de 40 anos, ilustra as dificuldades enfrentadas por muitos gaúchos. Sua casa foi tomada pela água, que subiu até o telhado, destruindo documentos e móveis antigos, inclusive, registros médicos de sua mãe, que lutou contra o câncer. “A dor emocional é imensurável”, relata Carolina, lembrando também da insegurança que acompanhou a destruição. Sua casa foi saqueada após a enchente, evidenciando a fragilidade da segurança em momentos de crise.
“As perdas materiais foram devastadoras, mas a dor emocional é algo que vai demorar muito mais tempo para cicatrizar.”
Maria Elisabeth Casses Presser, 67 anos, professora de educação especial, também passou por esse inferno. Após enfrentar uma enchente em Blumenau/SC, em 1984, ela se mudou para Porto Alegre, onde morava no bairro Sarandi há 17 anos. Em 2024, o cenário se repetiu: sua casa foi inundada até o segundo piso, e a perda de itens valiosos e memórias de uma vida inteira deixou marcas profundas.
“O que sentimos é um misto de impotência e tristeza. A sensação de que, mesmo com todos os esforços, as tragédias parecem se repetir”, afirma Maria Elisabeth. A falta de infraestrutura, somada à insegurança que também levou ao saque de sua residência, aumentou as dificuldades.”
O comerciante Cláudio Valandro, 53 anos, proprietário da Lancheria e Restaurante Brasil, também viu seu negócio ser devastado. O estoque foi perdido, e seu comércio ficou fechado por trinta dias. Apesar do apoio da comunidade, ele lamenta a escassez de ajuda por parte do governo.
“A solidariedade da comunidade foi fundamental, mas faltou mais ação do poder público. As tarifas cobradas, os custos inesperados e a falta de apoio tornam a recuperação ainda mais difícil.”
O que se observa, por meio dos relatos de vítimas como Carolina, Maria Elisabeth e Cláudio, é que, além dos danos materiais e emocionais, a resposta das autoridades foi tardia e, muitas vezes, insuficiente. A sensação de abandono é uma constante entre os afetados, especialmente, em regiões como a Zona Sul de Porto Alegre, uma das mais vulneráveis às cheias.
Segundo João Ignácio Pires Lucas, professor de ciência política da Universidade de Caxias do Sul, as enchentes expuseram a fragilidade da infraestrutura e a falta de preparo do poder público para lidar com desastres naturais.
“O Rio Grande do Sul precisa repensar a maneira como se organiza. As enchentes não são eventos isolados. Elas são um reflexo de um sistema falho, tanto no planejamento urbano quanto na gestão ambiental”, afirma. Para ele, é essencial que haja uma mobilização coletiva para a reconstrução, envolvendo não apenas as autoridades, mas também a sociedade civil.
Lucas aponta a necessidade de maior conscientização sobre os riscos e a responsabilidade compartilhada.
“Estamos em uma situação de corresponsabilidade. As pessoas ocupam áreas de risco, mas também precisam ser mais conscientes do impacto de suas escolhas no meio ambiente.”
A Enchente e as Mudanças Climáticas: Um Fenômeno Global
O debate sobre a relação entre desastres naturais e mudanças climáticas ganha relevância nesse contexto. O ambientalista Juliano Rodrigues Gimenez, professor da Universidade de Caxias do Sul, destaca que as enchentes de 2024 não são um fenômeno isolado, mas sim resultado de uma série de fatores que envolvem tanto a ação humana quanto as mudanças climáticas.
“O Rio Grande do Sul é uma região onde os impactos dessas mudanças se manifestam com frequência. O aumento da temperatura global e o desmatamento acelerado têm contribuído para eventos como esse”, explica.
Para Gimenez, a reconstrução passa pela criação de “cidades resilientes”, que devem ser projetadas para suportar os efeitos das mudanças climáticas. Isso envolve desde a adoção de políticas públicas de prevenção até a participação ativa da sociedade na criação de soluções sustentáveis.
O Papel da Solidariedade e a Fragilidade das Ações Voluntárias
Se a resposta institucional deixou a desejar, a solidariedade entre os gaúchos foi notável. Milhares de voluntários se mobilizaram, oferecendo apoio material e emocional às vítimas. No entanto, como destaca a advogada e voluntária Fernanda Pimentel, a falta de organização em muitos casos complicou essa ajuda.
“Sem protocolos claros para doações e sem o treinamento adequado para os voluntários, muitas vezes a ajuda se transformou em uma verdadeira confusão”, afirma Pimentel.
A falta de preparo dos próprios voluntários, somada à necessidade de apoio psicológico para lidar com o estresse do trabalho em situações de crise, é um dos pontos mais críticos, segundo a psicóloga Silvana Marcon.
“A ajuda, mesmo que seja bem-intencionada, precisa ser organizada e deve contar com um suporte emocional para aqueles que lidam com o trauma de perto. Precisamos aprender com boas práticas internacionais e garantir que, em futuros desastres, a resposta seja mais eficiente.”
O Futuro: Construindo um Estado mais Preparado
O caminho da reconstrução é longo e cheio de desafios. Para Carolina, Maria Elisabeth e Cláudio, o processo de recuperação emocional e material é apenas o começo. Os especialistas apontam que, além da resposta imediata, é fundamental que o Rio Grande do Sul invista em infraestrutura resiliente e em uma política de prevenção mais robusta. O planejamento urbano deve ser repensado para evitar a ocupação de áreas de risco e, sobretudo, é necessário que a população se conscientize da necessidade de uma mudança comportamental.
Para João Ignácio Pires Lucas, a reconstrução do estado deve ser um esforço coletivo e contínuo, que envolva todos os setores da sociedade.
“As enchentes de 2024 são um alerta. Precisamos olhar para o futuro com mais seriedade e preparar o Rio Grande do Sul para os desafios que virão.”
A solidariedade, como demonstrado pela população afetada, é uma base sólida para a reconstrução. No entanto, como apontam os especialistas, a responsabilidade maior recai sobre as autoridades, que devem garantir que o estado se torne mais preparado e resiliente, para que, no futuro, as tragédias como essa possam ser evitadas ou, pelo menos, mitigadas.