Mais de dois milhões, trezentos e cinquenta mil e quatrocentos. Este número poderia representar a população inteira da Eslovênia. Mais de setenta e oito mil, novecentos e noventa e cinco. Poderia ser a quantidade de torcedores que lotariam o Maracanã. Mais de cinquenta e cinco mil e oitocentos, equivalente à capacidade de um cinema inteiro. Aproximadamente a lotação de setenta Airbus A380, o maior avião do mundo. Mas esses não são apenas números. São retratos de vidas afetadas e interrompidas pela maior tragédia climática que já atingiu o estado do Rio Grande do Sul. A catástrofe devastou 469 dos 497 municípios gaúchos, que agora precisam encontrar “na terra que amamos desde guri” a força para recomeçar.
Em 1941, Porto Alegre viveu um cenário semelhante ao atual, marcado por uma tragédia climática devastadora que, curiosamente, ocorreu na mesma data. Até 3 de maio deste ano, aquele evento era o mais significativo na lista de desastres climáticos no Brasil. Naquela época, o Guaíba atingiu 4,75 metros, inundando 15 mil casas e deixando 70 mil pessoas desabrigadas. Um terço do comércio e da indústria local permaneceu fechado por cerca de 40 dias, com a cidade enfrentando 22 dias consecutivos de chuvas. Infelizmente, os números dessa tragédia histórica foram superados nas últimas semanas, com o Guaíba alcançando 5,33 metros. Estudos indicam que, em 1941, as chuvas se estenderam por 24 dias, de 13 de abril a 6 de maio, acumulando 600 milímetros de precipitação. Já em 2024, volumes superiores foram registrados em um curto período, em algumas regiões, foram 200 milímetros de precipitação em apenas três dias.
Desde 1941, 83 anos se passaram, e eventos climáticos extremos continuam a evidenciar as mudanças que o mundo tem sofrido. As destruições causadas por essas calamidades provavelmente nunca serão esquecidas por aqueles que as vivenciaram. João Gabriel Brunelli, hoje com 93 anos, presencia as consequências da enchente pela segunda vez. Em 1941, com apenas 10 anos, ele viu de perto Porto Alegre submergir. Agora, como um nonagenário que carrega muitas histórias, ele revive os sentimentos daquela infância marcada pelas inundações da época.
Em 1941, barcos e canoas se tornaram o principal meio de transporte devido a enchente histórica. Agora, em 2024, o mesmo fenômeno se repete, transformando novamente a paisagem urbana. Cidades antes movimentadas por carros, pessoas e aviões se tornaram submersos. Além disso, o aeroporto permanece sem previsão de reabertura, acentuando a gravidade da situação.
Brunelli, afirma que as enchentes, apesar de impactarem o Estado de formas semelhantes, não podem ser comparadas. Para ele, a enchente de 1941 foi impactante, mas a atual promove uma das maiores devastações já presenciadas. A comparação ilustra a intensidade e o alcance do desastre atual, que supera qualquer evento anterior em termos de danos e desestruturação da vida cotidiana.
Segundo registros, após a inundação houve interrupção de luz e água, assim como aconteceu desta vez. Em 2024, vidas foram impactadas, casas destruídas, objetos adquiridos ao longo de anos foram perdidos, sonhos interrompidos e rotinas completamente afetadas. Documentos, que são o registro da própria vida, desapareceram em meio às águas.
Após a enchente de 1941, se tornou evidente a necessidade de construir uma barreira para evitar novos desastres. Pouco mais de 30 anos depois, em 1974, foi concluído o chamado Muro da Mauá. A estrutura, localizada entre o cais Mauá e a avenida Mauá, no Centro Histórico de Porto Alegre, possui 3 metros de altura e 2,6 quilômetros de extensão. Agora, o sistema de contenção das águas do Guaíba enfrenta o primeiro grande desafio desde a criação. Segundo Brunelli, a necessidade de políticas públicas é urgente, assim como o cuidado com a natureza.
Segundo João, os recantos de veraneio de Porto Alegre foram inundados em 1941. Em 2024, cidades inteiras foram devastadas e muitos verões levados. Nas vidas perdidas, nos abrigos, no mover da solidariedade, nas ruas, nos locais mais afetados, casas deixadas para traz completamente destruídas pela lama, está a força de cada gaúcho ali, representado. O ator Ian Somerhalder destaca: “Olhem para os corais ou para as árvores e olhem para os vossos pulmões – não se nota literalmente nenhuma diferença. Eles são os mesmos. Por isso, quando destruímos o nosso ambiente, estamos efetivamente a destruir-nos a nós próprios.”
Frente a tantas destruições e incertezas, o amor se tornou o maior movimento por meio da solidariedade e talvez essa seja a marca deste povo tão aguerrido e bravo. A marca de um Estado que, mesmo diante da maior tragédia climática de sua história, não se curva, mas se ergue ainda mais forte. As cenas de devastação são também cenas de união e superação.
Voluntários de todos os cantos do Brasil, equipes de resgate incansáveis e doações chegando de todas as partes demonstram que a solidariedade é a resposta mais poderosa diante deste caos. As comunidades afetadas encontram forças na ajuda mútua, reconstruindo não apenas casas, mas também sonhos e esperanças.
O espírito resiliente dos gaúchos se manifesta em cada gesto de ajuda, em cada reconstrução, em cada vida que se reergue. Assim, enquanto as águas podem ter levado bens materiais, o legado de coragem e união permanece intocado. Brunelli, com seus 92 anos, vê novamente o povo enfrentando a adversidade com determinação, mostrando que, mesmo nos momentos mais sombrios, a luz da solidariedade pode iluminar o caminho para um novo começo.
E é com essa força que o Rio Grande do Sul se reconstrói, transformando a dor em esperança, e a destruição em um novo capítulo da história. E como diria o hino do estado, “sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra.” A verdadeira façanha dos gaúchos é essa: a capacidade de renascer das águas mais fortes e mais unidos do que nunca.