A música “Oração da Família” traz uma mensagem muito bonita sobre compartilhar e semear coisas boas, até porque, a partilha é algo muito relevante nas relações humanas. Fazendo uma reflexão sobre isso, percebemos que essa partilha vai muito além do pão.
O trigo é sinônimo de fartura em diferentes culturas e é sobre ele que a gente vai falar hoje, ainda que indiretamente. Até porque, pesquisadores estimam que 1% da população mundial seja portadora da doença celíaca, contudo, dificuldades no diagnóstico podem elevar, e muito, esse percentual. Além da subnotificação, a condição ainda esbarra em outro problema, a contaminação cruzada de alimentos, causada, muitas vezes, pelo desconhecimento das pessoas quanto ao tema.
O diagnóstico tardio é outro obstáculo na vida dos celíacos, pois traz riscos à saúde desses pacientes. Até porque, entre os principais sintomas estão náuseas, inchaço abdominal, aftas, dores de cabeça, problemas de infertilidade e, mesmo, atrasos no crescimento. Sintomas que tem origem, em sua maioria, em problemas gastrointestinais e, justamente, por isso podem ser confundidos com diversas outras doenças do sistema digestivo, a exemplo da intolerância a lactose e da síndrome do intestino irritável.

Essa dificuldade no diagnóstico acaba fazendo com que os pacientes sejam obrigados a conviver, de forma longeva, com esses sintomas. Contudo, a ingestão continuada do agente causador dessa inflação, no intestino delgado, pode desencadear problemas mais graves, inclusive, o câncer. Quem explica é a nutricionista, Alice Sganzerla, ela que descobriu ser portadora da doença, em 2020.
A profissional esclarece que o diagnóstico só veio, porque a irmã gêmea dela também é portadora da condição, e como a doença pode ter causas genéticas, o diagnóstico acendeu o sinal de alerta. Mas, o caminho até aqui foi longo, elas são moradoras de São Marcos e o diagnóstico, preliminar, não foi assertivo, pois a endoscopia solicitada pelo médico, não foi submetida à biopsia, caminho necessário para a identificação correta da doença, assim como exames clínicos e laboratoriais.
Inclusive, a nutricionista chama atenção quanto à falta de capacitação profissional para atender pacientes com essa condição, o que leva ao diagnóstico tardio da doença. Sem contar que o tratamento consiste numa mudança importante de hábitos, e não apenas alimentares. Seja por conta da dificuldade em encontrar produtos sem glúten, ou ainda, por conta do alto valor agregado destes produtos, o que nem sempre cabe na realidade financeira das famílias.

Além disso, os celíacos ainda podem sofrer com a exclusão social que a condição pode acarretar, principalmente, entre as crianças. Neste sentido, o acompanhamento profissional multidisciplinar, que inclui a ajuda psicológica, é fundamental. Ainda que isso imponha alguns desafios diários, principalmente, quanto à organização das refeições que, muitas vezes, precisa ser preparada, previamente, longe dos riscos causados pela contaminação cruzada.
Isso porque, celíacos também não podem ter contato com utensílios de cozinha, que tenham sido utilizados no preparo de alimentos que contém glúten. Contudo, alguns produtos improváveis também podem conter a proteína alimentar, a exemplo de xampus, desencadeando crises alérgicas, muitas vezes, severas.
Neste sentido, as regulamentações são muito importantes, pois são elas que irão determinar quais informações deverão constar em rótulos, por exemplo, é o que esclarece a gestora pessoal e patrimonial, a Gabriela Polesso Barcarolo. Ela também explica que o Código de Defesa do Consumidor prevê essa descrição de produtos, inclusive, quanto a possíveis resquícios da proteína vegetal.
Além disso, de que pessoas portadoras da doença celíaca têm direito a cardápios diferenciados em escolas e ambientes hospitalares. Ela também orienta sobre a importância das pessoas estarem cientes quanto a isso, até para fazer valer esses direitos.
Todavia, ainda existem pessoas que não, necessariamente, têm alergia ao glúten, apenas uma sensibilidade, sendo categorizadas como não-celíacas. No entanto, isso não significa que elas não enfrentem problemas de saúde, ou que não carecem de um diagnóstico adequado.
É o caso da nutricionista, Silvia Sbravati, ela descobriu a sensibilidade ao glúten há 15 anos. Como ela decidiu suprimir a proteína da dieta antes de ser submetida ao exame padrão ouro de diagnóstico da Doença Celíaca – endoscopia digestiva com biopsia, para o qual o paciente precisa ficar super exposto ao glúten, por no mínimo dois meses – ela não recebeu o devido diagnóstico. Porém, ao fazer o exame genético, ela constatou que não apresenta os genes envolvidos na Doença Celíaca, o que indica que a sua sensibilidade ao glúten é não-celíaca.
A partir disso, ela pode constatar a dificuldade que é conviver com essa condição, pois, segundo Sílvia, a indústria superestima o uso da proteína nas composições dos produtos. Ela exemplifica citando o molho shoyu que, originalmente, não possuía glúten em sua formulação.
Neste sentido, ela reforça a necessidade de estar atento aos rótulos, pois nem todos os fabricantes cumprem a legislação.

A nutricionista ainda chama atenção para doenças que podem surgir quando o diagnóstico acontece de forma tardia, a exemplo de osteoporose e anemia, doenças causadas pela deficiência na absorção de nutrientes, e situações bastante comuns. Contudo, o maior problema enfrentando pelos celíacos, na opinião dela, continua sendo a contaminação cruzada, situação que gere imbróglios, inclusive, dentro de casa.
Além disso, segundo a entrevistada, muitas pessoas entram em estado de negação, ou seja, continuam a ingerir a proteína, mesmo passando mal.
De acordo com a presidente da Associação de Celíacos do Rio Grande do Sul (Acelbra/RS) e mestre em Nutrição, Fabiana Magnabosco de Vargas, outro impasse importante tem a ver com o valor desses alimentos, que chegam a custar quatro vezes mais que os convencionais.
Situação que prejudica a adoção de uma dieta sem glúten, principalmente, entre a população mais carente. Inclusive, Fabiana conta que ingressou na faculdade de nutrição, depois de ser diagnosticada com a doença, em 2014. E que as dificuldades vivenciadas no cotidiano, principalmente, ligado a contaminação cruzada, serviram de mote para as pesquisas desenvolvidas durante o mestrado e o doutorado em Ciência e Tecnologia dos Alimentos.
Até porque, ela conta que sofria com infecções urinárias de repetição, anemia e, mesmo, alopecia (calvície), que desapareceram depois da supressão do glúten.
Conforme a nutricionista, o setor de pesquisas brasileiro ainda é muito deficitário, pois somente a Universidade de Brasília é referência no assunto para pesquisas na área em todo o país. Neste sentido, e a fim de ajudar outras pessoas, ela criou alguns protocolos de limpeza de utensílios e de equipamentos domésticos, em especial, a tripla lavagem. No caso da indústria, a ideia dela é criar um detergente enzimático, ou seja, capaz de realizar essa limpeza de forma mais eficiente, ou ainda, sugerir a criação de produtos com lavagem a seco.

Já a professora do curso de Medicina, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), e especialista em Gastroenterologia, Georgia Onzi, explica que o diagnóstico de doença celíaca não passa pela realização de testes rotineiros, ou seja, não é toda pessoa com sintomas gastrointestinais que deve ser submetida, necessariamente, a testes sorológicos, ou mesmo, endoscopias.
Antes, é preciso investigar esses sintomas a fundo, utilizando uma tabela protocolar, na qual o médico investiga, entre outras coisas, se o paciente tem algum parente, em primeiro grau, que seja portador da doença celíaca, pois o fator genético está presente neste tipo de doença.
Além disso, pacientes portadores de síndromes de Down e de Turner também estão mais propensos a desenvolver a doença, assim como, portadores de doenças autoimunes, como tireoide e diabetes.
A médica também destaca a supervalorização dada ao glúten na atualidade, como se ele fosse o grande vilão das dietas. Quando, na realidade, a ausência dele no cardápio é que facilita o ganho de peso, entre outras coisas, pela substituição de produtos sem glúten, por outros, mais ricos em gorduras. Portanto, na opinião da profissional, a supressão da proteína na dieta, sem a devida orientação médica, é irresponsável.
Ela esclarece que a maneira mais eficiente de tratar pacientes com doença celíaca continua sendo a mudança de hábitos alimentares. Uma vez que a remissão de sintomas é muito particular, podendo ultrapassar dois meses; e a cicatrização do intestino, até dois anos.
Neste sentido, ela esclarece sobre a função social exercida pela comida, situação que pode desencadear uma série de impactos na vida cotidiana destes pacientes, exigindo mudanças, não apenas dentro de casa. Ainda que isso seja desafiador, pois o glúten é muito utilizado pela indústria, a fim de dar liga aos alimentos.
Questionada sobre quais alimentos contém glúten, a médica cita o trigo, o centeio e a cevada. Quanto à aveia, em tese, ela não conteria glúten, contudo, como existe a contaminação cruzada, o produto nem sempre está livre deste componente. Portanto, os pacientes são orientados a suprimir, ainda que de forma provisória, a aveia da dieta.

Os muitos profissionais ouvidos pela reportagem falaram da função social desempenhada pela comida na nossa vida social e cultural. Afinal, ela faz parte de momentos importantes em que se partilha não apenas as refeições, mas o tempo um do outro. Sendo desafiador para os celíacos participar desses encontros sem se preocupar com a presença do glúten nos alimentos. Portanto, ser empático com essas pessoas é tão fundamental quanto investigar e compreender as causas do problema.