Quando são discutidos os problemas estruturais brasileiros, a violência emerge como um dos desafios mais urgentes. Trata-se de uma questão que impacta a vida de todos os cidadãos, sendo uma problemática complexa que requer reflexão e compreensão para ser efetivamente solucionada.
Conforme apontado por um estudo conduzido por Maiara Corrêa, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, no ano de 2022, cerca de 45% dos detentos são reincidentes, demonstrando uma recorrência preocupante à prática criminosa após o cumprimento de suas penas. Essa reincidência encontra suas raízes em fatores como o envolvimento em comunidades violentas e a escassez de oportunidades para os egressos, tanto no que diz respeito à forma como a sociedade lida com a reinserção dos ex-detentos quanto à falta de especialização e educação resultante do afastamento do convívio social.
Para isso, existe a necessidade de mudar a forma como a sociedade vê os presos e o sistema penal como um todo, como explica o Delegado da 7ª Delegacia Policial Regional, Aguilar Avila.
Visando a ressocialização dos presos, é importante que a sociedade acompanhe o que acontece dentro dos presídios sem ignorar o problema, e que o trabalho e a educação sejam disponibilizados dentro das casas penais.
A juíza Joseline Vargas, da 1ª VEC Regional e Diretora do Foro de Caxias do Sul, destaca que o judiciário desempenha um papel limitado na ressocialização, enfatizando a importância da sociedade nesse processo. Ela ressalta que a atuação da comunidade é crucial para oferecer oportunidades, profissionalização e uma segunda chance às pessoas que saem do sistema prisional. A juíza destaca a diferença entre sociedades atuantes, que buscam efetivamente reintegrar os ex-detentos, e aquelas que negligenciam essa responsabilidade. Vargas observa que cidades como São Francisco de Paula, Canela e Gramado, que cuidam de seus presos de maneira mais próxima e possuem conselhos comunitários atuantes, apresentam perspectivas mais favoráveis de ressocialização em comparação a lugares como Caxias do Sul, onde os presídios, especialmente o Apanhador, são mais isolados e as pessoas tendem a afastar o problema. Ela enfatiza a responsabilidade da sociedade na promoção efetiva da ressocialização, destacando a necessidade de proporcionar oportunidades para reintegrar os indivíduos à comunidade.
Com o viés de reinterpretar como a sociedade lida com os criminosos, surge a Justiça Restaurativa, que propõe uma nova maneira de lidar com o crime e conflitos, focando na humanização e pacificação das relações sociais envolvidas. As práticas restaurativas, inspiradas nesses princípios, se tornam ferramentas poderosas para promover uma cultura de paz ao lidar com conflitos. Questionar como aplicamos a justiça não afeta apenas o sistema judicial formal, mas também o impacto cultural e social, da forma como são feitos os julgamentos nas vidas diárias, refletindo os métodos tradicionais que podem transmitir vícios autoritários ao longo das gerações.
A Justiça Restaurativa surge como uma terceira via, uma abordagem baseada na responsabilização e na reparação de danos, em contraste com a tradicional busca por culpados. Essa mudança de perspectiva vai além de uma prática; é uma transformação na visão sobre conflitos e crimes. O modelo restaurativo propõe substituir a imposição por diálogo, negociação e construção de soluções, com ênfase na reparação dos danos causados.
A aplicação prática dessas ideias exigiu o desenvolvimento de métodos específicos, como os “círculos de construção de paz”. A metodologia, originada em práticas tribais de povos originários, se expandiu no Brasil, sendo adotada em diversos contextos, desde situações judiciais até escolas e comunidades. Os círculos de construção de paz proporcionam diálogos eficazes em momentos de alta tensão e contribuem para a resolução pacífica de conflitos.
A disseminação da Justiça Restaurativa ganhou impulso em 2012, quando Caxias do Sul, uma das cidades pioneiras no assunto no país, firmou um protocolo de cooperação entre judiciário, executivo e universidades para criar um programa municipal. Em 2014, a cidade aprovou uma lei que institucionalizou o programa “Caxias da Paz”, tornando-se pioneira nesse movimento. O impacto nacional da Justiça Restaurativa foi reforçado em 2015, quando a Associação dos Magistrados do Brasil articulou uma campanha nacional. Esse esforço resultou na nomeação de uma comissão para estabelecer normas nacionais em 2016. Desde então, os tribunais brasileiros têm a obrigação de implementar órgãos de gestão, oferecer capacitações e integrar-se às redes de serviços, ampliando a influência da Justiça Restaurativa em várias esferas.
Assim, a Justiça Restaurativa no Brasil emerge não apenas como uma abordagem alternativa no sistema criminal, mas como um movimento social abrangente, capaz de transformar conflitos e busca prevenir violências, construindo uma sociedade mais justa e pacífica.
O Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e um dos pioneiros da restaurativa em Caxias dos Sul, Leoberto Brancher, explica que a Justiça Restaurativa não é uma alternativa à justiça comum, mas uma abordagem adicional que pode coexistir com ela. É aplicada em situações específicas, exigindo que o transgressor admita a verdade dos fatos e que todas as partes concordem com a solução. Ao contrário do abolicionismo penal, não busca a impunidade, mas busca combinar elementos, como assistência e controle, para fornecer uma resposta pública mais eficaz ao crime.
O Desembargador ainda destaca a importância de mudar a abordagem punitiva do sistema legal para uma perspectiva restaurativa. Ele enfatiza como o sistema tradicional de justiça gera emoções negativas, como rancor e vingança, e propaga uma perturbação emocional na comunidade. Ao introduzir práticas restaurativas, Brancher destaca a criação de um ambiente de colaboração, honestidade e empatia. Ele ressalta que a abordagem restaurativa não se trata apenas de determinar culpa, mas de criar oportunidades de aprendizagem ética, promovendo valores positivos e fortalecendo tanto a vítima quanto o agressor. O Desembargador destaca a importância dessa abordagem especialmente em contextos educacionais, onde as práticas restaurativas podem ser uma ferramenta poderosa para desenvolver formas construtivas de lidar com conflitos desde a infância, contribuindo para a construção de uma cultura de paz.
O Presidente do Conselho da Comunidade, Flavio Custodio, destaca a desafiadora realidade de lidar com a população carcerária, ressaltando a importância do trabalho voluntário na busca por soluções. Ele enfatiza a complexidade do sistema prisional, reconhecendo a necessidade de seguir as orientações da instituição, ao mesmo tempo em que destaca a importância de compreender as histórias individuais dos detentos. Custódio aborda a necessidade de uma abordagem mais ampla, envolvendo a família, a comunidade e trabalhando conflitos através de círculos específicos, buscando a resolução de conflitos e a promoção da recuperação e bem-estar dos indivíduos envolvidos
Em Caxias, são dois presídios administrados pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Atualmente, a Policia Penal, enfrentam dificuldades devido à falta de efetivo e à superlotação dos presídios. Mesmo diante desses obstáculos, o trabalho de ressocialização é realizado e visto como principal foco da instituição, como esclarece o Delegado da 7ª Delegacia Policial Regional, Aguilar Avila.
A administradora da Penitenciária Estadual do Apanhador, Ariane Ferreira Burmann, destaca a necessidade de adequação dentro das possibilidades existentes, reconhecendo a dificuldade gerada pela alta demanda. Para lidar com essa realidade, enfatiza a importância de envolver os detentos em atividades laborais, buscando proporcionar-lhes uma sensação de utilidade e distração. Além disso, destaca o compromisso com o processo de ressocialização, evidenciando a presença de uma escola dentro da penitenciária. Ariane acredita que a combinação de educação e trabalho é essencial para efetivar a ressocialização e demonstrar à comunidade que os presos estão passando por transformações visando sua futura reintegração na sociedade
Ariane Ferreira Burmann, também destaca a importância do trabalho dos presos em diversos projetos, como a reciclagem de lixo, a confecção de uniformes e a produção de almofadas. Ela ressalta que os recursos obtidos com essas atividades são revertidos em melhorias no estabelecimento prisional. Além disso, menciona a colaboração dos detentos em projetos externos, como a restauração de módulos no Parque dos Macaquinhos, evidenciando a relevância desse trabalho para a ressocialização efetiva dos indivíduos privados de liberdade.
Ariane Ferreira Burmann faz um apelo pela união entre empresários locais e o sistema penal para ampliar as oportunidades de reinserção na sociedade.
A juíza Joseline Vargas, da 1ª VEC Regional e Diretora do Foro de Caxias do Sul, esclarece que a ressocialização dos presos é possível e é o principal objetivo das casas prisionais. Ela destaca que muitos detentos não tiveram acesso à educação básica e oportunidades de emprego. Portanto, dentro dos presídios, uma das formas fundamentais de estruturar os detentos e evitar a reincidência é fornecer educação e um projeto de vida centrado no trabalho, especializado durante o período de reclusão.
Ela ainda destaca a importância de fomentar projetos dentro do sistema prisional, incentivando a participação da sociedade. Ela ressalta a necessidade de sensibilizar empresários sobre as oportunidades de levar o trabalho de suas empresas para dentro das casas prisionais, enfatizando os benefícios de custo para as empresas e as possibilidades de remissão de pena para os detentos. Além disso, a juíza destaca o papel dos juízes de execução criminal na destinação de recursos das penas alternativas para auxiliar na melhoria das condições dentro das prisões, como a construção de salas de aula e a otimização de pavilhões de trabalho.
O Desembargador Leoberto Brancher destaca a singularidade de Caxias do Sul por ter sido a primeira cidade a implementar uma política municipal de Justiça Restaurativa, completando 10 anos em abril de 2024. Ele enfatiza a importância de refletir sobre o impacto dessa iniciativa ao longo das administrações municipais, reconhecendo a cidade como uma referência nacional em Justiça Restaurativa. Brancher destaca a formação de mais de mil facilitadores voluntários, a constituição de comissões de paz em diversas instituições e o funcionamento das três centrais restaurativas no fórum, mantidas pelo programa municipal. Ele ressalta a recente aprovação de uma moção de apoio à implementação da Justiça Restaurativa nas escolas de todo o Brasil durante a Conferência Nacional de Educação, iniciativa impulsionada por uma delegação de professores caxienses. O Desembargador celebra esse momento como uma oportunidade para a cidade reconhecer, valorizar e revitalizar seu papel de liderança na promoção de uma sociedade mais tranquila, integrada e pacífica.
A abordagem aos problemas estruturais da violência em Caxias do Sul exige uma visão transformadora. A justiça restaurativa emerge como uma alternativa promissora, enfatizando a humanização e pacificação nas relações sociais, desafiando os métodos tradicionais, oferecendo trabalho, educação e projetos de vida para que os presos tenham a possibilidade de reintegrar a sociedade. A reincidência criminal, destacada pelo estudo de Maiara Corrêa, evidencia a necessidade de repensar tanto a reinserção dos ex-detentos na sociedade quanto as práticas do sistema penal. O engajamento de diversos setores, incluindo empresários locais, na ressocialização dos detentos, conforme observado em algumas iniciativas em Caxias do Sul e região, ilustra um caminho concreto para reduzir a violência e oferecer oportunidades de transformação. A promoção da educação e projetos de vida especializados, ressaltados pela juíza Joseline Vargas, torna-se crucial para estruturar os detentos e prevenir a reincidência. Assim, a busca por soluções eficazes não só requer mudanças estruturais, mas também uma transformação cultural na forma como é encarada a justiça e a reintegração, visando construir uma sociedade mais justa e pacífica para todos os cidadãos.