O senso comum costuma dizer que: “em briga de marido e mulher ninguém mete à colher”, será? Dados de uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam o contrário. Segundo o estudo, a cada minuto 35 mulheres foram agredidas no Brasil, em 2022. Além disso, mais de três milhões de mulheres sofreram ameaças com faca ou com arma de fogo. E quase oito milhões receberam agressões como chutes e socos, naquele ano. Inclusive, a pesquisa feita com mais de duas mil mulheres em todo o país indica que a violência contra a mulher cresceu em 2022. A proporção de agressões relatadas passou de 24% (2021) para quase 29% (2022). O número total de vítimas de 16 anos ou mais chegou a 18,6 milhões. Sendo que companheiros e/ou ex-companheiros são responsáveis por quase 60% dessas agressões. Ainda conforme o estudo, mulheres negras e de até 34 anos são as vítimas mais recorrentes.
Assim como aquelas com menor escolaridade, ou seja, que cursaram até o ensino médio. Porém, isso não significa que outras mulheres estejam isentas de sofrer com os efeitos da violência doméstica. Prova disso, é a mulher que dá nome a Lei Maria da Penha, a história fatídica e que culminou com a vítima imobilizada numa cadeira de rodas, para o resto da vida, é marcada pela impunidade, confira:
“Em maio de 1983, eu estava dormindo, era por volta de cinco, seis horas da manhã, e quando eu acordei com um estampido muito forte dentro do meu quarto, do nosso quarto, eu tentei me mexer e não consegui. Aí imediatamente eu tive o pensamento: “puxa, o Marco me matou! Fiquei imediatamente imobilizada, porque foi um tiro que atingiu a medula, e eu não mais tive nenhum movimento. A versão dele para a polícia, para os vizinhos e para quem perguntasse era que ele escutou um barulho estranho dentro de casa, levantou-se e se deparou com quatro assaltantes, lutou com os assaltantes, e de repente os assaltantes disseram, está chegando gente, vamos embora, aí saíram. A polícia investigou alguns vizinhos, e quando eu tive condição de conversar com a polícia, uns 15 dias depois, porque eu tinha ido para a casa dos meus pais, aí sim eu fui ouvida. Quatro meses depois do fato, o delegado resolveu chamá-lo novamente. Quando ele chegou à delegacia, aí o delegado interrogou novamente, ele não lembrava mais o que havia dito, os detalhes da história, muitos detalhes que ele contou, ele não lembrava mais. Ele começou a entrar em contradição e por isso ele foi iniciado como autor da tentativa de homicídio contra a minha pessoa, mas passou apenas uns quatro ou cinco dias preso lá na delegacia. O delegado conseguiu apurar com a investigação que ele simulou um assalto, porém, demorou oito anos para ele ser julgado.”
Com o passar dos anos a Lei Maria da Penha se tornou mais severa. Esse avanço legal permitiu, inclusive, o uso de tornozeleiras eletrônicas pelos agressores, oferecendo mais segurança as vítimas de violência. Em Caxias do Sul, por exemplo, os casos de feminicídio caíram, em comparação ao ano passado. Foram cinco assassinatos de mulheres em 2023, contra sete em 2022. Ainda assim, isso não significa que os casos de violência estejam sob controle. Até porque, a subnotificação ainda é algo comum, seja pela falta de conscientização sobre o tema ou medo do agressor. Sem contar, que muitas mulheres ainda sofrem com efeitos psicológicos e a vergonha em expor esse tipo de situação, inclusive, por medo do julgamento de familiares e amigos. Apesar de o Município dispor de uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) e de uma importante rede de apoio, para prestar atendimento qualificado às mulheres, conforme explica a delegada titular da Deam, Thalita Andrich.
Já a delegada adjunta da Deam, Carla Zanetti, explica que a legislação brasileira passou por avanços importantes, a fim de resguardar as mulheres vítimas de violência, pois, muitas vezes, elas também são alvo de coação e abuso psicológico. Ou seja, é importante a interferência jurídica para que elas não voltem atrás quando, finalmente, chegam a denunciar esses agressores. Uma dessas medidas tem a ver com a violência sexual, agora ela é incondicionada a ação penal pública. Outro mecanismo eficaz em Caxias do Sul é a Patrulha Maria da Pena, que conta com equipe especializada da Brigada Militar para monitorar mulheres com medidas protetivas no Município, realizando rondas constantes, a fim de observar o cumprimento da restrição.
Conforme as delegadas da Deam, Caxias do Sul registra muitos casos de violência contra a mulher, especialmente, agressões físicas e de ordem psicológica, além da patrimonial. O que indica a importância do Município contar com atendimento especializado. No entanto, a sensação de impunidade ainda é um problema a ser vencido, ou seja, exigindo a aplicação de penas mais severas, ainda que a legislação tenha avançado, na última década.
Coordenadoria da Mulher
A vergonha de falar sobre o caso e o medo de serem julgadas também acaba inibindo essas mulheres de procurarem ajuda enquanto é tempo. Isso, quando elas têm noção da violência sofrida, pois, muitas vezes, ela vem mascarada de cuidado exacerbado, como explica a Titular da Coordenadoria da Mulher, Fabrine Artiole e Souza. A titular da Coordenadoria da Mulher ainda explica que a entidade está vinculada à Secretaria de Segurança Pública e Proteção Social e é responsável pelas articulações das políticas públicas para as mulheres a nível municipal. Neste sentido, ainda conta com o Centro de Referência para Mulher, local de atendimento, acolhimento e também de orientação. No entanto, Fabrine explica que o papel mais importante desempenhado pela Coordenadoria da Mulher ainda é trabalhar pela criação de políticas públicas voltadas para o combate da violência contra a mulher, em parceria com toda rede de apoio disponível em Caxias, entre eles: o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher/CONDIM, a Deam e a Justiça da Vara de Violência Doméstica.
Neste sentido, a profissional indica que em 2023 o Município teve algumas conquistas importantes, a exemplo da ampliação de uma Lei Federal que resguarda às mulheres vítimas de violência um percentual de 10% em vagas de emprego no Sine. Em Caxias, as mulheres que precisam de ajuda para voltar ao mercado de trabalho podem contar com o apoio irrestrito da entidade, o que representa um avanço importante. Até porque, a dependência financeira impede que essas mulheres rompam esse ciclo de violência doméstica. Outra medida destacada pela coordenadora foi à inserção de telefone para denúncias de violência contra mulher em contas do Samae.
Feminicídio
O Brasil é o quinto país em mortes violentas de mulheres, diariamente, morrem quatro mulheres por feminicídio no país. No entanto, nem sempre é fácil romper esse ciclo de violência, que às vezes termina em tragédia. Conforme explica a psicóloga, Adriana Boz, quando a mulher se dá conta dos abusos sofridos, muitas vezes, os estragos na auto-estima já foram feitos e, inclusive, podem desencadear quadros de ansiedade e até mesmo depressivos. A profissional ainda explica que relacionamentos nocivos passam por diferentes estágios, um deles é a síndrome da lua de mel. Em que, logo após um abuso físico mais severo, o agressor muda completamente de postura, a fim de ludibriar a vítima, mas a mudança de comportamento é momentânea e, normalmente, em seguida novas violências são cometidas contra a mulher. Essa montanha russa de emoções tem efeitos na saúde psíquica da mulher, a psicóloga explica que elas perdem a autonomia e a autenticidade, além da confiança nas relações. Neste sentido, a psicoterapia auxilia no resgate da identidade perdida e pode outorgar a confiança necessária para que a mulher denuncie casos de violência, seja ela física, sexual, patrimonial ou psicológica.
No entanto, mais grave que isso, é os casos de violência que acabam culminando em feminicídio. Onde a vítima não é apenas a mulher, mas toda a sociedade. Para, além disso, essas tragédias familiares acabam deixando crianças órfãs; e pais e amigos desolados. Só para se ter uma ideia, conforme dados do Fórum de Segurança Nacional, de 2015 a 2021, só no Rio Grande do Sul foram vítimas de feminicídio 667 mulheres no Estado, o que representa duas mortes a cada 100 mil habitantes. No Brasil esse número chega a 1.341 mulheres vítimas da violência doméstica.
A 4ª edição da pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil” aponta que todas as formas de violência contra a mulher cresceram muito em 2022. Só nos últimos 12 meses do ano, cerca de 30% das mulheres relatam ter sido vítima de algum tipo de agressão, o maior percentual já verificado na série histórica.
Armas de fogo e violência doméstica são combinações perigosas, quando não geram lesões graves ou permanentes, ainda pode matar. Até porque, no Brasil essas armas letais representam um fator de risco para o cometimento de feminicídios. Inclusive, a Lei Maria da Penha prevê a suspensão ou restrição do porte de armas do agressor, se constatada a prática delituosa. Para evitar esse tipo de situação, ações preventivas são essenciais, a exemplo de uma caminhada realizada em Caxias do Sul e que pedia o fim da violência contra a mulher. O protesto pacífico aconteceu em novembro de 2023, quando mulheres caxienses saíram em passeata pelas ruas da cidade, pelo terceiro ano consecutivo. O ato foi organizado pelo Grupo de Mulheres do Brasil, Núcleo de Caxias do Sul. Tamyris Rosso é quem está à frente do Comitê de Combate à Violência do Núcleo Mulheres do Brasil no Município. Ela explica que o grupo é suprapartidário e nasceu há dez, a nível nacional.
Em Caxias do Sul, o núcleo regional foi criado em 2020 e possui diversos comitês e que tem algumas frentes prioritárias, entre eles, o Combate à Violência, a Saúde, de Educação, de Empreendedorismo e, ainda, de Antirracismo e de Comunicação. Além disso, o núcleo de Caxias ainda desenvolve algumas ações de conscientização sobre o tema. Tamyris cita como exemplo uma exposição fotográfica, realizada durante o agosto lilás, mês voltado ao combate da violência contra a mulher.
Casa Viva Raquel
Caxias do Sul ainda conta com um local que serve de moradia provisória, enquanto essas mulheres estão se reestruturando emocional e financeiramente: a Casa Viva Raquel, que oferece esse tipo de suporte há mais de 24 anos no Município. As informações foram dadas pela coordenadora do local, Maureen Kahler Bagattini. Segundo ela, a Casa Viva Raquel tem como diferencial o fato de abrigar também os filhos de mulheres vítimas de violência doméstica, desde que sejam menores de 18 anos. Maureen explica que o espaço surgiu em 1999 e que, portanto, a Casa Viva Raquel é um projeto anterior à Lei Maria da Penha, instituída em 2006. E que se trata de um local que acolhe mulheres vítima de violência doméstica, sendo que o acesso se dá por meio do Centro de Referência da Mulher, responsável por gerenciar vagas desse abrigo e que tem capacidade máxima para 15 pessoas, entre mulheres e filhos. No entanto, quem administra e executa o serviço junto à Política Nacional de Assistência Social é a Associação Mão Amiga.
Desde 2015, o local ainda conta com o apoio financeiro da Fundação de Assistência Social (FAS). Ela conta que já passaram pelo abrigo cerca de duas mil mulheres, o espaço oferece suporte psicológico e jurídico às vítimas e, ainda, encaminhamento para o mercado de trabalho. E apesar de não ser possível traçar um perfil de mulheres que estão ou já passaram pela Casa Viva Raquel, a maioria é de mulheres entre 23 e 45 anos, sendo comum entre elas o fato de saírem de relacionamentos tóxicos e com mais de uma década, o que indica a dificuldade das vítimas em romper o ciclo de violência e como o machismo e patriarcado estrutural ainda faz parte da nossa sociedade.
Vítima de Violência Doméstica
Quem passou pelo local e contou com foi importante esse suporte é a professora, de 32 anos e que nós vamos chamar de Patrícia (nome fictício). A nossa vítima de violência doméstica conta que ela veio de um lar abusivo, assim como acontece com muitas outras mulheres. Ela ainda teve um filho na adolescência e viu a mãe sofrer maus tratos durante 30 anos, até dar um basta à violência. No caso de Patrícia foram mais de dez anos convivendo com o inimigo, que ameaçava não só a integridade física dela, mas também de amigos e familiares. Patrícia conta que o ex-companheiro chegou a ligar para pais de alunos dela, quando a professora decidiu sair de casa e também fez escândalo na porta da escola. A terapia durante o período de home Office, na pandemia, foi fundamental para romper o ciclo de violência, assim como todo o suporte dado pela Casa Viva Raquel, que a fez entender que aquilo não era normal, como ela pensava.
Existem muitos tipos de violência contra a mulher, e nenhum deles pode ser tolerado. Casos de abuso devem ser denunciados pelo telefone 190. Afinal, quem se cala compactua com a prática e é tão responsável pelas conseqüências disso, quanto o autor da agressão. Você conhece alguma mulher vitima de violência? Então, denuncie!