O que uma mãe solo, um casal de amigos que decidem adotar uma criança parda, duas meninas que se apaixonam pela internet, uma outra que foi mãe na adolescência; uma terceira que foi adotada, ainda bebê; e outra apaixonada pela filha de quatro patas têm em comum? É, justamente, o que você vai descobrir hoje, na nossa reportagem especial deste sábado.
O fio condutor desta jornada se chama família, mas não exatamente aquela do tipo convencional, ou poderia dizer, dentro dos parâmetros do comercial de margarina, e olha que disso eu entendo! Mas, atenção! Como eu sempre digo, qualquer similaridade com o meu nome, é mera coincidência.
As famílias retratadas nesta reportagem são reais e puderam ser constituídas graças a um elemento em comum, o amor. Mesmo que a nossa sociedade ainda seja bastante patriarcal e, por que, não dizer preconceituosa. Conforme nos explica a professora da Universidade de Caxias do Sul, Aline Passuelo de Oliveira, que também é docente de Sociologia, de Antropologia e de Ciência Política. Segundo Aline, esses e muitos outros conceitos são construções sociais e que, ainda, sobrecarregam a mulher de uma série de estigmas, a exemplo da suposta predisposição genética para a maternidade ou o cuidado. A estudiosa ainda fala sobre questões ligadas a adoção e de como isso carrega consigo um lastro repleto de estereótipos e na qual crianças pardas e negras ficam sempre para trás.
Contudo, contrariando essa premissa, temos o exemplo da servidora pública federal, jornalista e também escritora, Lisandra Melo Barbiero. Recentemente, ela lançou seu primeiro livro, no qual ela conta sobre a experiência pessoal quanto à adoção, que chegou na vida dela muito cedo e marcou para sempre a sua história. Ela, uma criança parda, criada no seio de uma família branca e de classe média, descobriu, ainda criança, como o preconceito em torno da adoção pode deixar feridas difíceis de curar.
Conforme dados do painel de acompanhamento do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), as crianças pretas ou pardas constituem a maioria (69,6%) das mais de cinco mil disponíveis para adoção no Brasil. Essa proporção é superior à da própria população negra do país que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), encontra-se em 56,1%. A discrepância entre os indicadores evidencia a maior vulnerabilidade das crianças negras, e de como isso é desafio, à parte, diante do racismo estrutural brasileiro, informação corroborada pela estudiosa, Aline Passuelo.
Surpreendentemente, existem mais de 35 mil pretendentes à adoção, o que significa que para cada criança que espera ser adotada há quase sete famílias desejando adotar. No entanto, o trâmite e a burocracia no processo de adoção no Brasil são complicados e demorados, quem conhece bem essa realidade é o casal de amigos, André Luís Engelke e Vivian Charara.
Ainda que eles tenham optado pela adoção de uma criança fora dos padrões habituais, a espera foi prolongada, cerca de três anos. Inclusive, esse caminho começou de maneira solo, mas acabou aproximando os dois, que passaram a morar juntos, como amigos, para criar a pequena Nathiely, na época com um ano e dois meses.
Outro dado estatístico e que merece a nossa atenção, em se tratando do tema, são os casos de gravidez precoce. Até porque, mais de seis milhões de bebês nasceram de mães adolescentes no Brasil, no período de 2008 a 2019, a maioria das jovens que tiveram filhos são indígenas e negras. Os dados são de um estudo desenvolvido por meio de uma parceria entre o Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) e o Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa).
A pesquisa também mostra que as regiões Norte e Nordeste concentram os maiores números de mães adolescentes do país, que têm entre 10 e 19 anos. Um exemplo disso, é o da pedagoga, Regina Augusta Fernandes, hoje com 41 anos, e mãe de duas meninas, uma de 24 e outra de 16 anos. Regina foi mãe, em 1999, quando tinha, apenas, 16 anos.
A entrevistada relatou a angústia que sentiu, na época, ao se ver naquela situação e as dúvidas quanto ao futuro, que parecia incerto. Contudo, a história teve um desfecho feliz, pois para a maioria das adolescentes a gravidez precoce é momento de desespero, pois o filho não estava nos planos, e o aborto, muitas vezes, parece ser a única solução. Inclusive, pesquisa realizada na América Latina, pelo Instituto Alan Guttmacher, aponta que no Brasil existe uma taxa anual de quase quatro abortos para cada 100 mulheres, na faixa etária de 15 aos 49 anos de idade.
Outro tema importante e que precisa ser discutido é a questão da sexualidade masculina e feminina, construções sociais criadas a partir de estereótipos completamente diferentes. Isso porque, essa ideologia de gênero, normalmente, responsabiliza a mulher e exime os homens, de qualquer responsabilidade, nas questões ligadas à contracepção e à maternidade, por exemplo.
Com base nessas informações, você certamente já entendeu que o julgo é desigual em nossa sociedade, em se tratando de homens e mulheres. Mas, você já parou para pensar em como os comerciais de TV ajudam a reforçar e/ou refletem comportamentos sociais, inclusive, em se tratando de família? Para entendermos melhor sobre a questão, conversamos com o coordenador do curso de Comunicação Social, na área de Publicidade e Propaganda, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), professor Ronei Teodoro.
Segundo ele, a publicidade influencia e sofre influência das mudanças sociais, especialmente, quanto a essas representações. No passado, por exemplo, ele explica que anúncios brasileiros, frequentemente retratam uma população predominantemente branca, com pouca representatividade negra. Essa visão estereotipada foi questionada e, hoje em dia, os anúncios buscam maior diversidade e representação igualitária. Essa mudança ocorreu após debates e esforços para quebrar paradigmas, inclusive, de gênero.
Voltando a atenção para a etimologia da palavra família, ela vem do latim, “famulus”, que traduzida ao pé da letra quer dizer: “escravo doméstico”. Contudo, alinhado a um termo mais moderno, a palavra pode ser entendida como “um agrupamento humano” seja ele coletivo, com ligações biológicas, ou não; ancestrais, legais e, ainda, afetivas.
A relações públicas, Liliam Cristina Vieira Lima, por exemplo, conta que nunca sentiu essa suposta inclinação natural para o casamento e a maternidade. Situação muito diferente dos sentimentos dela pelos animais, que sempre fizeram parte da sua vida. Ela se autointitulado mãe de pet, algo cada vez mais comum na atualidade, onde casais têm cada vez menos filhos, ou nenhum. Inclusive, de acordo com o censo realizado no Brasil, em 2022, o ritmo demográfico aponta que há 25 anos, o número de casais que decidiram não ter filhos era de 13%. Hoje, a taxa subiu para 19%.
O ciclo de mudanças na tradicional configuração familiar começou com o avanço da emancipação feminina, e a nossa entrevista se valeu disso. Ela conta que há oito anos, Maya, uma Shitzu, chegou na vida dela e ocupou o coração das relações públicas, que tem na filha de quatro patas sua referência de família. O desvelo da mãe fica claro com a preocupação dela com a Shitzu, inclusive, quando precisa sair de casa, ou a “filha” está doente. Inclusive, ela está promovendo uma rifa para custear os gastos médicos do animal. No site da Rádio Caxias tem o link, para quem quiser ajudar.
Ainda segundo dados do IBGE, cerca de 15% dos lares brasileiros são chefiados por mães solo. Esse percentual equivale a mais de 1,7 milhão de “pães” que surgiram na última década, e 90% delas são mulheres negras. Ainda de acordo com a pesquisa, mais de 70% vivem apenas com os filhos, sem nenhuma rede de apoio.
É o caso da aposentada Selira Haese, que é mãe da Elizângela Haese Dutra, e avó da pequena Sara e do Levy, e nora do Jimmy Pereira Dutra. Selira explica que não pode contar com o apoio do pai da menina, que nunca assumiu formalmente a paternidade e nem ajudou na criação da filha. Selira desabafa sobre as dificuldades encontradas para criar a filha e a sobrinha, Erenice Haese, que ela adotou aos quatro anos. Muitas vezes, indo dormir de barriga vazia, para garantir o almoço das meninas no dia seguinte.
Situação que aponta uma lacuna quanto ao atendimento básico dessas mulheres, em se tratando de políticas públicas, ante a sua invisibilidade social, situação denunciada também pela estudiosa Aline Passuelo. Segundo o Boletim Especial, divulgado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em referência ao Dia da Mulher (08 de março), a maioria dos domicílios no Brasil é chefiado por mulheres. Dos 75 milhões de lares, 50,8% tinham liderança feminina, em 2023, o correspondente a 38,1 milhões de famílias.
Além disso, quando a gente pensa em família, também é preciso considerar as uniões homo afetivas, ainda que a realidade esbarra no preconceito, ela é cada vez mais comum. Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o total de matrimônios homo afetivos, em 2022, ficou acima de 11 mil. Na comparação com 2021, o resultado aumentou quase 20%. As uniões firmadas em 2022 também estão acima dos números observados em 2018 (9,5 mil) e 2019 (9 mil). É o caso da contadora, Tamires Silvi do Prado, 28 anos, e da técnica administrativa, Ana Júlia Grella Boldrini, de 26 anos, elas estão juntas há quase 10 anos e, em breve, pretendem oficializar a união. Também são mães da pet Luna, mas a maternidade biológica está nos planos do casal, pois é o sonho de Ana Júlia. Ainda que elas também cogitem a possibilidade de adotar uma criança.
Certamente, cada um de vocês, que está ouvindo essa reportagem, teria casos parecidos com os que eu apresentei hoje, seja da sua família ou do seu círculo de amizades. Dito isso, uma questão relevante, a ser pontuada, é o respeito que deve , ou deveria, permear as relações humanas. Sim, digo isso em primeira pessoa e contrariando os preceitos jornalísticos. Digo isso, porque, não raro, discursos de ódio vêm à tona quando alguém tem uma maneira de pensar diferente da nossa, isso também se aplica ao conceito de família.
E é este o fio da meada que eu quero puxar, antes de encerrar essa reportagem especial, contando para vocês sobre um caso bem pessoal, acerca da minha família e que demonstra algo dito no início dessa reportagem, ou seja, que os vínculos familiares nunca foram homogêneos, a gente é que tem a tendência de romantizar a realidade e desconsiderar que a sociedade é uma organismo vivo e multifacetado, que se reinventa a cada dia, e muitas vezes, as políticas públicas e a legislação não conseguem acompanhar.
A minha bisavó paterna, Maria Ahnert, é exemplo disso, ela foi viver com um homem desquitado, chamado Otto Eggert, meu bisavô, e teve com ele mais de 10 filhos ( Luiz Ahnert, Emma Ahnert, Teodoro Ahnert, Helena Ahnert, Eliza Ahnert, Elza Ahnert, Atilio Ahnert, Norberto Ahnert; Júlia Ahnert, Geni Ahnert, Frida Ahnert, Alfredo Ahnert, Elvira Ahnert), todos eles registrados no nome de solteiro dela, e por motivos óbvios. Pensa a coragem dessa mulher, e os tabus que ela precisou enfrentar para criar os filhos, numa época em que os julgamentos sociais eram ainda mais acirrados.
Contudo, estamos em pleno século XXI, e ainda hoje, tem gente se ocupando da vida alheia, criticando ao invés de acolher. Seja como for, o importante é não perder de vista que família é um agrupamento de pessoas, cada vez mais diverso, é verdade, mas que, ainda assim, carece de respeito, tenha ela o formato que tiver. Até porque, falar de família é falar de amor, de acolhimento, de ter com quem contar, independe da situação. Ou, pelo menos, eu acredito que deveria ser assim, espero que você também!
Reportagem: Noriana Behrend – Edição de Áudio: Michel de Oliveira