Bem-vindos a nossa reportagem especial deste fim de semana, com o tema: “Rostos e Riscos: do Brasil de Tarsila à NR-01”. Uma viagem entre arte, história, saúde mental e legislação trabalhista.
Noventa anos separam a pintura Operários, de Tarsila do Amaral, das novas regras que entram em vigor no Brasil em maio de 2025, obrigando empresas a mapear riscos psicossociais — aqueles que não deixam marcas na pele, mas ferem profundamente. Hoje, vamos entender por que a saúde mental virou tema central do trabalho, por que o país registrou mais de 470 mil afastamentos por transtornos mentais em 2024, e como a nova NR-01 busca responder a um problema que Tarsila já pintava em 1933.
Cinquenta e um rostos. O mesmo enquadramento. Quase nenhuma expressão de esperança Em Operários, Tarsila nos entrega uma galeria de cansaço. Os trabalhadores — minúsculos diante da fábrica — parecem engolidos por um sistema que, desde então, tem mais força que as pessoas. Mas se antes falávamos de exaustão física, hoje falamos de algo ainda mais profundo: o sofrimento emocional, silencioso, invisível, porém devastador. E é exatamente esse sofrimento que a NR-01 de 2025 finalmente transforma em obrigatoriedade legal para as empresas.
Entendendo a questão
Para a professora e pesquisadora Liliane Viero, especialista em Artes e Psicanálise Contemporânea, Tarsila antecipa debates que só agora ganham força institucional: “Ela pinta a diversidade étnica do Brasil industrial — migrantes, imigrantes, diferentes tons de pele, diferentes histórias — mas todos comprimidos, lado a lado, quase sem ar. Há unidade humana, mas também massificação. E isso segue atual. A exaustão coletiva continua.”
Essa leitura se torna ainda mais urgente quando lembramos que a nova NR-01 nasce justamente para dizer isso: antes da produtividade, existe uma pessoa. A professora explica que a pandemia gerou empatia, mas essa sensibilidade se perdeu: “Falamos tanto de empatia, mas ela está se esvaindo. A NR-01 chega para lembrar que não somos robôs. O emocional é o que sustenta o resto.”
Para entender o tamanho dessa virada, conversamos com a coordenadora do curso de Direito da UCS, professora Raquel Cristina Pereira Duarte, mestra em Direito. Ouça o que ela disse: “Essa norma existe há muito tempo e sempre foi central na área de Segurança e Saúde do Trabalho. Mas a atualização de 2024 — que terá fiscalização reforçada em 2025 — traz algo novo: o olhar obrigatório para a saúde mental. Antes tratávamos dos riscos físicos, químicos, biológicos, ergonômicos. Agora, os riscos psicossociais entram como elemento central do GRO. É uma mudança profunda na lógica da prevenção.”
Raquel explica que o Judiciário já percebia esse adoecimento há muito tempo: “Temos muitas decisões envolvendo assédio, burnout, sobrecarga. Mas as empresas não tinham obrigação de agir preventivamente. Agora, terão que provar ações reais — não documentos guardados para auditor ver.”
Raquel lembra que, diferente de uma fratura ou queimadura, o sofrimento emocional é difícil de comprovar — e por isso a empresa passa a ter responsabilidade também sobre sinais e contextos externos. “Uma mulher vítima de violência doméstica, por exemplo. A empresa pode ignorar isso? Claro que não. Há repercussões no trabalho. A NR-01 exige protocolos, encaminhamentos, suporte. As empresas terão que agir.”
E, fazendo a ponte com Tarsila, ela disse o seguinte: “Em Operários, todos têm o mesmo rosto. Uma massa uniforme. O Direito evoluiu para dizer exatamente o oposto: cada trabalhador é um indivíduo, com vulnerabilidades próprias. A prevenção precisa considerar isso.”
Dados sobre afastamentos no Brasil
O Brasil nunca adoeceu tanto. Em 2024, o país registrou mais de 470 mil afastamentos por transtornos mentais. Em entrevista à Rádio Caxias, o juiz Marcelo Caon, gestor do Programa Trabalho Seguro no TRT-4, descreveu: “Os transtornos mentais vêm crescendo de maneira alarmante. Não é possível tratar saúde mental como benefício. É direito trabalhista.”
Nas clínicas, o cenário é o mesmo. Na Serra Gaúcha, a psicóloga Ana Luiza Castelan, coordenadora do Complexo Jordani Mental Care, observa: “A síndrome de burnout está diretamente ligada a ambientes estressantes, metas excessivas e falta de limites. O corpo reclama: dor, pressão alta, fadiga. Mas antes disso vem o esgotamento emocional.”
Já a psicóloga Sabrina Rugeri reforça os efeitos do isolamento causado pela pandemia de Covid-19: “O isolamento da pandemia, o luto silencioso, o medo constante… tudo isso agravou os quadros de ansiedade e depressão.”
A doutora em Psicologia e professora da UCS, Silvana Regina Ampessan Marcon, nos ajuda a entender a mudança pela perspectiva da saúde mental. “A atualização da NR-01 vem depois de um aumento enorme nos afastamentos por transtornos mentais. As organizações precisam olhar para as pessoas. A psicologia sempre olhou, mas agora isso vira lei. O problema é que, sem a lei, muita empresa nunca teria atenção para isso.”
Silvana explica que a norma exige considerar algo que sempre existiu, mas quase nunca foi medido: os fatores psicossociais. “Uma pessoa endividada, por exemplo, já chega vulnerável. Outra vive violência doméstica. Outra dorme pouco por uso de redes sociais. Tudo isso interfere no trabalho.”
E ela faz um alerta: “Diagnóstico não é achismo. Existem escalas e instrumentos científicos validados. As empresas precisam usar metodologias sérias.”
Quando falamos da obra Operários, Silvana faz um paralelo: “Os rostos cansados de Tarsila representam uma visão histórica do trabalho como castigo. Hoje isso ainda é verdade para muitos — mas não para todos. Existem ambientes saudáveis também. A nova NR-01 tenta reduzir esse sofrimento, tornando o trabalho mais humano.”
Tecnologia a serviço da saúde mental
Na 6ª Vara do Trabalho de Caxias do Sul, especializada em acidentes e doenças, o juiz Marcelo Silva Porto vê o resultado extremo dessa negligência: “O que chega ao Judiciário não é só acidente físico. É sofrimento emocional, assédio, metas impossíveis. O adoecimento mental chega quando já virou litígio.” Porto reforça que a NR-01 tenta corrigir um atraso histórico: “A norma existe. O que falta é virar prática. O trabalhador adoece na cultura, não no papel.”
A gestão de riscos psicossociais ganhou aliada poderosa: a tecnologia. Plataformas, algoritmos, telepsicologia, wearables (dispositivos eletrônicos portáteis que podem ser usados no corpo, como smartwatches, pulseiras inteligentes, óculos e anéis, com o objetivo de coletar dados), dashboards — tudo tenta tornar visível o que antes era ignorado.
O corporate philosopher Guilherme Reolon resume: “A tecnologia não substitui cultura. Mas faz o invisível aparecer.” Mesmo com tantas ferramentas, o que psicólogos, juízes e pesquisadores veem é claro: o trabalhador segue adoecendo nas metas inalcançáveis, no ritmo acelerado, na falta de limites — como já alertava Operários há quase cem anos.
Reflexão final
Certamente, quando Tarsila pintou Operários, ela não imaginava que, quase cem anos depois, seus rostos dialogariam com trabalhadores de 2025 — perguntando: Quando é que o trabalho será sinônimo de dignidade, e não de exaustão? A NR-01 tenta responder a essa pergunta. Mas, como dizem Raquel, Silvana, Porto e tantos outros, ela só terá efeito quando virar cultura — e não apenas documento. Eu vou ficando por aqui com mais esse episódio especial da Rádio Caxias: “Rostos e Riscos: do Brasil de Tarsila à NR-01”. Até a próxima!





