“É a prova de que o Estado insiste em uma política de confronto que não resolve nada.”
A frase de Carolina Grillo, professora e coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da Universidade Federal Fluminense, foi dada em entrevista à Rádio Caxias, no dia seguinte à operação mais letal já registrada no Rio de Janeiro. Ela ecoa diante do cenário devastador deixado pela ação realizada na madrugada de 28 de outubro de 2025 nos Complexos do Alemão e da Penha. A operação policial contabilizou oficialmente dezenas de mortos — em sua maioria homens jovens negros e periféricos — o retrato de quem já vivia marginalizado antes mesmo do confronto.
“Cada operação dessas fortalece as facções e destrói ainda mais a confiança da população”, disse Carolina, refletindo sobre o paradoxo de ações que, enquanto visam combater o crime, queimam ruas, casas e esperanças.
Mas há outro dado que não pode ser ignorado: a maioria das vítimas era negra. Isso não é coincidência — é parte de um problema estrutural. Para Carolina, é consequência de uma política de segurança que invisibiliza vidas. “Golpe duro é o que sente quem perde um vizinho, um filho, um pai”, afirmou. Na opinião dela, “é a população negra das favelas a que mais sofre. Estatísticas oficiais não mostram que, na prática, quem morre nessas operações é quase sempre o mais vulnerável.”
Carolina aponta que, sob o manto de “combate ao crime”, se reforça o que muitos estudiosos chamam de violência seletiva: “A população vê a polícia como ator de guerra, e não como um agente de proteção. Isso gera medo, trauma e desconfiança, principalmente entre negros, que vivem sob risco duplo: do crime organizado e do próprio Estado.”
Nesse aspecto, o que disse Juçara de Quadros, ativista do Movimento Negro Unificado, e membro do Conselho da Comunidade Negra de Caxias do Sul, também em entrevista para a emissora, complementa a reflexão: “A luta contra o racismo é diária e deve ser refletida constantemente. A discriminação racial não desapareceu com o passar dos anos e, apesar das leis de reparação … o racismo ainda é uma realidade cotidiana para a população negra.”
De acordo com Juçara, “a sociedade brasileira ainda não enxerga a desvantagem histórica que os negros enfrentam. O racismo institucional persiste, com a maior parte da população negra vivendo em situação de desigualdade, especialmente nas áreas de educação, saúde e mercado de trabalho.”
Ela ainda reforça que a data do Dia da Consciência Negra, celebrada no próximo dia 20 de novembro, serve como alerta: “Enquanto isso, continuamos a lutar por direitos iguais, por uma educação de qualidade para todos, independentemente da cor ou origem social … A política de cotas, embora necessária, é apenas um paliativo para uma situação que deveria ser resolvida com políticas públicas que promovam a verdadeira igualdade.”
Já para Carolina, esta dinâmica torna-se letal no cotidiano das favelas: operações de guerra, corpos no asfalto, vidas negras invisibilizadas. E acrescenta: “não adianta só prender, não adianta só matar. É necessário desarticular as redes, investigar, cortar o mercado ilegal de armas e drogas. A força bruta sozinha não resolve. Pelo contrário: cria mais problemas e acentua a desigualdade racial já existente nas comunidades.”
Ela observa que quando a polícia invade com violência extrema, quem mais sofre são os moradores das comunidades. De acordo com ela, “é preciso pensar na proteção da vida, não apenas no resultado da operação.” Sendo esta “uma população já vulnerável por cor, classe e endereço, e que sublimou corpos em estatísticas”.
O contraponto de Fernando Montenegro
O ex-comandante da pacificação do Complexo do Alemão, veterano das forças especiais do Exército Brasileiro, Fernando Montenegro, trouxe uma perspectiva complementar, embora diferente da crítica feita por Carolina. Ele afirma que o Brasil ainda não leva a segurança pública a sério, criticando o abandono estrutural das forças de segurança e a falta de planejamento a longo prazo. Segundo Montenegro, operações como a do dia 28 de outubro evidenciam a fragilidade do Estado frente ao poder das facções, que exercem controle político e econômico nas favelas, obrigando moradores a consumir serviços indicados pelo crime e até influenciando processos eleitorais.
Montenegro afirmou em entrevista para a Rádio Caxias, que “o problema não é apenas o crime organizado, mas também a ausência do Estado de forma estratégica e contínua. A responsabilidade não pode recair apenas sobre a polícia; é preciso inteligência, presença e políticas públicas estruturadas”, reforçando que a violência seletiva nas comunidades é consequência da negligência estatal, e não apenas do confronto direto.
Seu diagnóstico acrescenta uma camada ao debate: enquanto Carolina e Juçara denunciam o impacto da operação sobre a população negra e vulnerável, Montenegro lembra que o Estado, ao não estruturar políticas de segurança eficazes, contribui para que o ciclo de violência continue, fortalecendo facções e mantendo a desigualdade social.
Enquanto o céu do Rio de Janeiro se acalma após o dia de tiros e helicópteros, a voz de Carolina, o alerta de Juçara e a análise de Montenegro permanecem como um chamado urgente: sem estratégia, planejamento, respeito à vida e enfrentamento real do racismo estrutural, a guerra urbana seguirá ceifando vidas negras e periféricas, transformando estatísticas em tragédias humanas.





