Reconstrução avança com lentidão enquanto famílias, agricultores e voluntários ainda carregam as marcas da maior tragédia climática da história do Estado.
Maio de 2024 não foi apenas um mês de chuvas. Foi o mês em que o céu caiu sobre o Rio Grande do Sul. Um marco. Um corte profundo no tempo, onde as águas não apenas invadiram cidades — invadiram vidas, lares, memórias. As enchentes que devastaram o estado foram mais do que uma tragédia climática: foram um retrato da vulnerabilidade humana frente à força indomável da natureza e, ao mesmo tempo, uma lição pungente sobre resiliência e solidariedade. Um ano depois, ainda é possível ouvir o eco das sirenes e sentir o cheiro da lama. As feridas continuam abertas — visíveis nos escombros e invisíveis nos silêncios.
Cidades afundaram, pontes ruíram, estradas sumiram. Mas não foi só isso. Também emergiram gestos que não cabem em boletins: mãos estendidas na madrugada, cobertores improvisados com dignidade, crianças pedindo não brinquedos — mas afeto. Uma verdadeira catarse coletiva, no sentido mais nu e visceral da palavra. Diante do colapso, o povo gaúcho respondeu com aquilo que mais lhe é caro: coragem.
“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra” — o hino do Rio Grande do Sul jamais ecoou tão forte quanto nas margens lamacentas do Taquari.
VIDAS EM SUSPENSO
Passado um ano, a reconstrução ainda anda a passos curtos, tropeçando na burocracia. Segundo Eugênio Guimarães, da Organização Internacional para as Migrações, 200 famílias seguem em abrigos humanitários. A realocação caminha, mas devagar. Há planos — compra assistida, aluguel social, acolhimento de animais. Há profissionais, há estrutura. Mas a espera… essa ainda dói.
Pois a fila da reconstrução não anda com a velocidade da necessidade. No bairro Sarandi, em Porto Alegre, o morador Edgar Fernandes vive esse compasso de espera e denuncia: sem infraestrutura, não há futuro. E sem futuro, não há paz.
No Vale do Taquari, a situação se repete. Em Arroio do Meio, o prefeito Sidnei Eckert reconhece os atrasos. E detalha o esforço para atender as 294 famílias que ainda esperam por um teto, desde setembro de 2023.
POLÍTICA E PROMESSAS
Há dinheiro. Há discursos. Mas entre a fala e o fazer, existe um abismo. O ministro Waldez Góes admite: não falta verba, faltam casas.
Enquanto isso, em Santa Tereza, a prefeita Gisele Caumo segue firme, mas exausta. Três enchentes em menos de nove meses. A cidade, pequena no tamanho, gigante na dor, desabafa: “Falta plano. Falta desassoreamento. Falta prevenção!” Gisele Caumo, denuncia a lentidão e a ausência de políticas de prevenção.
O deputado Osmar Terra afirma que o Congresso fez sua parte. Relatou leis, liberou bilhões, propôs pensões. Mas denuncia: “faltou liderança”. E enquanto os governos se perdem em disputas, o agricultor perde safra, perde solo, perde o chão.
DO BARRO À ESPERANÇA
Rosane Girelli, moradora da zona rural de Sant Tereza, não fala em números. Ela fala com olhos marejados: perdeu a casa, perdeu o parreiral. Fugiu a pé, por cinco quilômetros, com o coração nas mãos. Mas seguiu. Afinal, seguir é o verbo mais conjugado por quem sobreviveu.
Enquanto o sistema travava, a sociedade civil agia. Andreia Garbin, voluntária nas enchentes, que percorreu mais de 150 cidades, desabafa: “Era o povo pelo povo!”
Em meio ao caos, o detalhe escancara a urgência e o povo, de fato, não se omitiu! Voluntários como Andrigo Zardo, de Caxias do Sul, deixaram tudo para doar tempo, força e consolo. Como no caso de Dona Líria, que ganhou de volta sua ferramenta de sustento: uma máquina de costura.
ALÉM DAS ÁGUAS
A arte também prestou homenagem. O escultor Ricardo Cardoso criou a obra “Heróis Voluntários”, pois o aço não é frio quando representa doação.
Em Galópolis, onde sete pessoas morreram, o capitão Vinícius Manfio reforça a urgência dos planos de emergência.
Em Caxias do Sul, a Câmara isentou o ITBI para famílias de baixa renda. Roneide Dornelles, chefe da Casa Civil, detalha a medida. É pouco? Talvez. Mas já é um começo.
O secretário Pedro Capeluppi fala do Plano Rio Grande e aponta entraves políticos.
Do lado federal, Maneco Hassen rebate e destaca que os recursos estão parados por falta de ação local.
Para a Defesa Civil, a prioridade agora é prevenir. A tenente Sabrina Ribas explica: prevenção é mais do que lonas: é cultura, é educação.
Em Nova Petrópolis, o vice-prefeito Alexandre da Silva denuncia a burocracia que impede o retorno das famílias.
E o setor produtivo também tenta se reerguer. Augusto Martinenco, gerente do Sebrae RS, é quem faz o alerta. Afinal, quando se perde tudo, até o tempo parece parar.
RENASCER NÃO É VOLTAR AO QUE ERA
O que se vê, um ano depois, é que a tragédia foi mais que natural — foi social, política, institucional. A reconstrução do Rio Grande do Sul não se fará apenas com concreto, mas com dignidade, memória e justiça.
Porque o Rio Grande renasceu das águas. Não como era antes — mas como talvez sempre devesse ter sido: mais unido, mais consciente, mais forte. Sabendo que a maior força de um povo não está em resistir sozinho. Está em se levantar — juntos.
Ficha Técnica: Imagens/Vídeos corpo do texto (arquivos pessoais); Entrevistas: Vanessa Pedroso, Tales Armiliato, Keize Machado e Noriana Behrend; Edição: Chicão Vieira.