Em meio à campanha Agosto Lilás, que marca a luta pelo fim da violência contra a mulher, a promotora de Justiça Ivana Battaglin, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, fez um alerta contundente: “Se continuarmos no ritmo atual, levaremos 150 anos para alcançar a igualdade de gênero e vencer a violência contra as mulheres”. A estimativa é do Banco Mundial, mas também reflete a percepção de quem atua na linha de frente da defesa das vítimas todos os dias.
A fala da promotora ocorreu durante entrevista para a Rádio Caxias, na qual ela também ressaltou a importância da Lei Maria da Penha, que completa 19 anos, em 2025. Considerada uma das três melhores legislações do mundo pela ONU no combate à violência de gênero, a lei trouxe avanços importantes — como a criação das medidas protetivas de urgência —, mas ainda enfrenta entraves culturais profundos.
De acordo com a promotora, “apesar da existência de uma das melhores leis do mundo, o Brasil continua ocupando o 5º lugar no ranking global de feminicídios. Todos os dias, quatro mulheres são assassinadas simplesmente por serem mulheres. A maioria morre dentro de casa, pelo companheiro ou ex-companheiro que não aceita o fim da relação”, destacou Ivana.
Caso recente expõe brutalidade
A promotora também comentou um caso recente e chocante, ocorrido em Natal (RN), onde uma mulher foi brutalmente agredida com 61 socos no rosto pelo então namorado. O agressor alegou que “perdeu a cabeça” porque foi provocado. A vítima ficou com o rosto desfigurado e precisará passar por cirurgia de reconstrução facial.
“Esse episódio simboliza o quanto ainda estamos longe de garantir segurança para as mulheres. Não temos muito o que comemorar neste Agosto Lilás. Temos, sim, que refletir: como ainda chegamos a esse nível de brutalidade depois de 19 anos de uma lei como a Maria da Penha?”, questionou.
A lei é eficaz, mas não é suficiente
A promotora lembrou que a Lei Maria da Penha não criou novos crimes, mas sim um sistema de proteção às mulheres, permitindo, por exemplo, que agressores sejam afastados imediatamente do lar por decisão judicial. Mais tarde, foram incluídos na legislação crimes como violência psicológica, perseguição e o descumprimento de medidas protetivas.
A promotora ainda explicou que, “hoje, se o agressor descumpre uma medida protetiva, ele pode ser preso. Antes da lei, a mulher registrava ocorrência e voltava para casa para apanhar de novo. Agora, temos mecanismos, mas a aplicação da lei ainda depende de mudança cultural”, explicou.
Cultura patriarcal e educação de gênero
Segundo Ivana, o cerne do problema está na estrutura patriarcal da sociedade, que perpetua ideias ultrapassadas sobre o papel da mulher e do homem.
“A violência é aprendida. Ela nasce dentro das casas. Meninos aprendem que não devem levar desaforo para casa. Meninas aprendem a suportar caladas. A Lei Maria da Penha prevê, desde 2006, educação de gênero nas escolas, mas essa parte da lei ainda não é cumprida como deveria”, disse.
Ela criticou os discursos que atacam o conceito de educação de gênero, muitas vezes confundido com ideologias políticas. “Falar de gênero é falar sobre respeito, igualdade, convivência. É ensinar que homem não precisa ser agressivo e mulher não precisa obedecer”, afirmou.
Grupos reflexivos: solução com resultados
Uma das medidas mais eficazes, segundo a promotora, são os grupos reflexivos de gênero, que reúnem agressores em encontros obrigatórios para discutir suas atitudes e compreender a origem da violência.
Segundo Ivana, “a reincidência entre os homens que participam desses grupos é inferior a 5%. Entre os que não participam, chega a 70%. Isso prova que é um problema cultural. Esses homens muitas vezes só repetem o que viram em casa, o que aprenderam como normal”.
Violência patrimonial e psicológica ainda invisibilizadas
Além da violência física, Ivana ressaltou a importância de reconhecer outros tipos de agressões previstos na Lei Maria da Penha: moral, psicológica, sexual e patrimonial. Muitas dessas formas ainda passam despercebidas — até mesmo pelas vítimas.
“A mulher que entrega todo o salário ao marido, que é convencida a parar de trabalhar para cuidar dos filhos, que tem seus bens escondidos ou manipulados — tudo isso é violência patrimonial. E isso acontece em todas as classes sociais, especialmente nas mais altas, onde os prejuízos financeiros podem ser milionários”, afirmou.
Ela destacou ainda o impacto da violência psicológica, hoje reconhecida como crime: “Segundo especialistas, não existe violência física sem antes existir violência psicológica. É ela que prepara o terreno para o abuso físico”.
O dever de denunciar
Ivana Battaglin reforçou que toda a sociedade tem responsabilidade no enfrentamento à violência. “Hoje, meter a colher é um dever. Se você ouve gritos, vê sinais de agressão ou suspeita de violência, denuncie”, disse.
Canais de denúncia:
- Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher
- Ligue 100 – Disque Direitos Humanos
- Polícia Militar – 190
- Guarda Municipal – 153
- Delegacias de Polícia e Promotorias de Justiça
- Centrais de Atendimento do Ministério Público
Neste Agosto Lilás, a sociedade brasileira é convocada a refletir: o que estamos fazendo, hoje, para que as mulheres possam viver sem medo, e para que não seja necessário esperar mais 150 anos por igualdade? A resposta pode estar na legislação, sim — mas, sobretudo, na coragem de mudar a cultura que ainda naturaliza a violência.
“Não julgue a vítima. Ela já enfrenta um ciclo de violência difícil de romper. Esteja ao lado dela. E que o Estado, por meio das escolas e da Justiça, esteja também”, finalizou a promotora.
Confira aqui a entrevista completa.